Capítulo 1*. Dili cheira a queimado.

Dili cheira a queimado, morte e destruição. A visão é alucinante. Quarteirões inteiros de casas brancas incendiadas, devoradas por enormes labaredas negras, saqueadas, destruídas (…).

(…) Os correspondentes de guerra comentam que nunca viram algo assim, no Camboja, o Khemer Vermelho deixou Phnom Penh deserta mas a cidade praticamente intacta. Mesmo em Beirute a destruição foi por setores. Mas uma cidade inteiramente queimada, ninguém se lembra de ter visto.

Díli é uma cidade-fantasma onde, aqui e ali, começam a aparecer figuras humanas assustadas que emergem das ruínas. Um silêncio de morte, só interrompido pela passagem dos tanques (…).

(…) de qualquer maneira, o que alguém viria fazer aqui? Como se costuma dizer em todas as guerras: bem-vindo ao inferno!

Foi o que sobrou de um País que queria ser livre. Não houve uma guerra civil. Estranhamente, esse é o resultado de eleições livres, democráticas, ainda por cima promovidas e garantidas pelas Nações Unidas. Com a realização assegurada por tratados internacionais devidamente assinados.

No dia 30 de agosto [de 1999] a população do Timor-Leste foi convocada às urnas. Essa ex-colônia portuguesa que declarou a independência em 1975 foi invadida pela Indonésia dias depois. A ocupação – violenta, Brutal, que levou à morte de 200 mil pessoas, era totalmente ilegal segundo todas as leis e tratados internacionais. Mas era tolerada pela comunidade internacional durante 24 anos. Apesar de todas as pressões e ameaças, 97% da população com pareceu às urnas e 78,9% escolheu a independência.

O resultado foi a destruição quase total do País. Durante dias e noites sem fim, o exército indonésio e as milícias – formadas e pagas pelos generais – mataram, violaram, pilharam, queimaram. A violência, que tinha começado muito antes das eleições, ficou incontrolável a partir de 4 de setembro, quando os estrangeiros começaram a ser evacuados. Os últimos funcionários das Nações Unidas saíram no dia 14, até 21 de setembro, quando as tropas internacionais desembarcaram em Dili, todo o país ficou entregue à violência. Sem testemunhas.

É difícil imaginar como era a vida aqui antes. Uma cidade queimada é um enigma difícil de decifrar. Aos poucos os primeiros refugiados começam a voltar. Começo a ver gente saindo das ruínas. Ao me ver eles cumprimentam: “Bom dia, senhora!”. Outros olham para o relógio – quando ainda têm ou para a posição do sol e corrigem: “Não, desculpe. Boa tarde!”. Eles têm a roupa do corpo, escaparam ninguém imagina de que dramas, mas têm uma educação de lorde inglês!

Aos poucos, a população – que chegou a ser de 100 mil habitantes e estava escondida nas montanhas para escapar da onde de violência – começa a voltar e acampa na praia, em condições terríveis. Todo mundo vive da ajuda humanitária – sacos de arroz – que mal começou a ser distribuída. A atividade econômica foi reduzida a zero, no Timor o povo está reduzido a ver navios. Literalmente. Os navios de guerra que atracaram em frente à capital. É tudo o que há para fazer nessa cidade destruída. Não há muita escolha por aqui. A vista sempre é terrível. Olhando para um lado, a cidade queimada, para o outro, o mar, o horizonte, coalhado de navios de guerra.

Em pleno centro de Dili, completamente carbonizado, onde os prédios foram transformados em amontoados de ferros retorcidos, com destroços que continuam a cair, ameaçando quem passa, vejo um senhor contemplar da calçada o estrago sem uma lagrima, mas com uma expressão de dor profunda e surda. Ele olha para mim, encontra meu olhar desolado e diz, numa mistura de tétum e português, a frase que eu ouviria tantas vezes no Timor: “Queimado queimado, mas agora nosso!”.

*Trecho do capítulo 1 do livro Queimado queimado, mas agora nosso! Timor: das cinzas à liberdade de Rosely Forganes. Editora Labortexto editorial. São Paulo, 2002. 507p.

Saiba mais sobre a relação entre Timor-Leste e o Brasil:

Timor-Leste: reaprendendo a língua portuguesa com a ajuda do Brasil

Intriga e batatinhas em Timor Leste

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